TOM MAIOR
Espalhou aquarelas
de flores tão belas
e amou todas elas.
Brancas, verdes, amarelas.
Amou as mulheres,
amou os amigos,
os bichos, os livros,
as águas de março.
Cantou com Sinatra, com Elis.
A felicidade, a cidade feliz.
E agora, Maestro?
Sem mais, vais embora
como um passarinho.
Cidade cinzenta
chora de saudade.
É o fim da picada.
É o fim do caminho.
Scyla Bertoja
***
HERESIA
No altar a lâmpada votiva
entre lírios brancos
exibe do sagrado a chama perene
alimentando de fé aos iniciados.
vejo teu rosto além do lume
porque a retina alcança além do altar
a visão transcende o limite dos olhos
que encantados foram pelo teu olhar
agora entrego-me à contemplação
beirando heresia endeuso um semideus
embora adivinhe Odisseus ao mastro acorrentado
tendo com cera os ouvidos tampados
libera-te e não temas
ora dormem as sereias
porque de amar e de cantar exaustas
transmutados seus encantos
são apenas conchinhas na areia
afogadas que foram por marés de prantos
Scyla Bertoja
***
CINZA
gosto
mais de janelas fechadas
que não deixam
passar a claridade
nem quero
ver as luzes da cidade
sou como os pombos
dias cinzentos são belos
para mim
passaria meu tempo
de bom grado
arrulhando
sobre velhos telhados
nos fundos
das casas velhas
do Bom Fim
Scyla Bertoja
***
COLETIVO - 2008
Lá na avenida passando
Iluminadas janelinhas
Dos chamados coletivos
Como colares de contas
Feitos de puro cristal
Pra enfeitar a linda imagem
Da noite da capital
E essas mágicas jóias
Vão apinhadas de sonhos
Dramas e tragédias
Amores, dores, comédias
De moços, velhos e anjos
Sem contar alguns demônios
E todos querendo chegar
Com a mesma pressa ao porto
Pois desejo do coração
É o aconchego do lar
“Corre, corre, cria asas,
vai ligeiro, vai depressa,
devora essas avenidas,
queremos voltar pra casa”.
Scyla Bertoja
***
INEVITÁVEL
nasceu agora
desconhece a sede dos desejos
e a fome não sentiu
desses teus beijos
não a tentes, por Deus
anjo inocente, indefeso
lhe ensinarei o medo
repetirei que é cedo
direi que és o demônio
embora saiba
farás o teu ofício à perfeição
e um dia
em teu olhar que seda
com voz macia
queira eu, ou não
ela se encanta
e cede
Scyla Bertoja
***
O DIA – 2000
Maria
amanhecia rosa orvalhada
ao vento da manhã
cedo demais
em plena madrugada
na ânsia de viver
João
pele dourada
mãos calejadas
plantava e colhia
inquieto coração
já era meio-dia
mas havia um lugar
onde o tempo
por passatempo
lhes concedia tempo
para amar
por um momento
ao fim
Maria sol-a-pino
João escuridão
Maria dor e solidão
sem mais tempo
passa o tempo
lembrando João.
Scyla Bertoja
***
ÔNIBUS (agosto/2000)
Meu vizinho tinha um ônibus
que era a coisa mais linda
do meio pra cima, azul
do meio pra baixo, branco
durante a semana, sujo
mas no domingo, tão limpo
que parecia que andava
nas nuvens, sem encostar
nenhuma roda no chão
O ônibus era grande
eu, então, pequenina
que lindos bancos aqueles
para brincar de casinha
e tinha muitos lugares
reservados
para personalidades
que eu havia convidado:
A filha de Dona Rita
que já dançava balé
e o dono do armazém
que tocava acordeão
e seus quatro netos
e a Pina
que era mãe de criação
e o filho da vizinha
que tinha cabelos negros
e bochechas rosadinhas
e que sempre que podia
se atrasava no caminho
para andar junto comigo
e com outras menininhas
chutando as folhas do chão
colecionando pedrinhas
mas, no ônibus,
ele sentava
com a minha melhor amiga
Scyla Bertoja
***
PREOCUPAÇÃO TRANSCENDENTAL Setembro-2001
nasci perfeita
e fui me transformando
mais e mais adiante
fui ficando pior
fazendo tudo errado
ignorante
me ensinaram o bem
fui para o outro lado
aprendi pela dor
e a corrente que leva tudo
também levou meu amor
é hora de voltar
de fazer o contrário da viagem
agora sem bagagem
até me transformar
novamente
na folha branca de Rousseau
quando terminar
receio que a vida
me faça recomeçar
e viver tudo de novo
sucessiva e eternamente
nas tão faladas outras vidas
Scyla Bertoja
***
HUMANA
ora em recônditos nichos
Hamlets rebelam-se
e me exaltam os ânimos
a resolver com um punhal
os problemas da vida
ora um anjo sussurra-me
o salmo vinte e três
e me deixo descansar
em verdes pastos
ao som de coros celestiais
ora me inquieto
e pondero se valeu Perséfone
ser condenada ao Hades
por não ter resistido
a uma doce romã
ora me descubro humana
com um segredo de Midas
a desafiar-me a coragem
a expor minha fragilidade
ora temo
entre orações e poções
a chegada
das monções
Scyla Bertoja
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